Ela é esguia e sinuosa, sedutora e dominadora como uma gata. Passa a maior parte do tempo sem se mexer em uma preguiça inerte, mas, quando se movimenta, dança com uma elegância desajeitada. Aparentemente inofensiva, é uma amante dengosa, porém, ao mínimo descuido ou descaso, agride sem pena. Na intimidade do contato, é subjugadora. No dia-a-dia, pode-se contar sempre com ela. É envolvente e agrupadora, facilmente se conecta ou propõe uma conexão formando redes, teias, costuras e emaranhados. É filha de Yemanjá, adora viajar. Deusa dos mares, vai ser facilmente encontrada em embarcações à vela, atemporal.
objetos
Parecia dança
Tomou aquela menina, já um pouco imóvel nos braços, e a vestiu como a coisa mais linda ou necessária que poderia integrar seu corpo. Seu suor tomava aquele corpo de mulher, como a madeira banhada em verniz que se enche de brilho.
Parecia lindo... Parecia dança...
Meus olhos por alguns momentos, não sabiam mais a quem dar a importância do olhar. Na mulher que dançava como quem ama o vento, ou na criança de pouca mobilidade, que sutilmente remetia a imagem de um objeto de madeira. E na gota de suor que escorreu ali, quase despercebida do queixo da dançarina, me trouxe a sensação de que o toque da gota, de encontro com aquele ser envernizado, o faria mais vivo e gentil. Depois de percebido a importância dessa criança, a dançarina encontrava paz em sua movimentação, sentou se naquilo, como se sentasse num banco de descanso, que levemente buscava afeto. Talvez, de uma pequena lembrança do corpo e suor, que lhe trazia vida nas manhãs de sextas feira.
Foto de João Saenger
O artista de circo é um domador de objetos
As discussões sobre como o objeto se relaciona com o corpo suscitadas nos últimos ensaios me fez pensar em como o circo traz essa questão, tradicionalmente e de forma geral *.
A relação do artista de circo com seu aparelho remete-se, simbolicamente, às origens do circo moderno: o circo de cavalinhos. Nos treinos diários, o aparelho deve ser domado como um domador cuida de seu animal - a partir de seu próprio corpo, em um jogo dançado entre corpo e, aqui, no caso, o objeto.
O corpo se transforma no contato diário com o aparelho, feito de aço, cordas de algodão, ferro, madeira ou outros materiais até mais tecnológicos, mas não mais gentis. As dores sentidas nos primeiros contatos com o objeto vão diminuindo a partir da criação de um diálogo entre corpo e matéria. O objeto laceia, gasta, se flexibiliza a partir do contato com a pele e a pele se endurece, agarra, se adapta. Esse encaixe é preciso e delicado e faz parte de uma construção diária de treinos disciplinados e íntimos com o objeto. Qualquer mudança faria o aparelho parecer um estranho.
Essa fidelidade do artista ao seu objeto (que pode ser um trapézio, uma bengala, uma clave de malabarismo, uma cadeira, etc) tem uma forte relação com a segurança da performance. Essa relação pode ser entendida de forma racional - quanto mais íntima e diária é o contato do artista com o aparelho, menor as chances de erro, ou ainda, de forma simbólica - o objeto circense figura como o fio de separação entre a vida e a morte.
Essa intimidade diária com o fio da vida é o treinamento do artista circense. Um corpo moldado pela presença constante do risco. Um objeto selvagem dominado pelo artista domador. Nesse processo de docilização do aparelho não há espaço para táticas agressivas. A única possibilidade é a total entrega, fazendo com que a persistência, o toque diário do corpo no objeto transformem suas estruturas, desgastando-o, ou então, a precisão de ritmo, intensidade e trajetória da manipulação promova uma sincronia milimétrica entre o movimento do artista e o do objeto. Uma dança a dois.
Essa reflexão me evoca a imagem das grandes ou pequenas erosões naturais, de contato da água com as rochas, nas quais um movimento mínimo da água constrói paisagens raríssimas. Grandes ressacas do mar na encosta ou gotas singelas nas estalactites. Água mole em pedra dura tanto bate até que vira circo.
* Considerando aqui algumas das modalidades circenses, as que o aparelho circense é central é indispensável à própria performance.
Referência
Maleval, Martine. O Objeto: O Nó Górdio em: O Circo no Risco da Arte. Wallon, Emannuel, 2009.
cuidado com as cadeiras
quem sou eu n.4
Sou tímido e receptivo, adoro visitas. Estou sempre ao seu serviço, por mais humilhante que isso seja. Te recebo como um escravo ou uma amante, com toda a devoção que me é própria, apesar do seu trato desrespeitoso. Quando você chega me ignora, me toca com os pés, me oferece o seu lado mais sujo e mundano. Eu faço questão de estar sempre lá, passivo e contente como um cachorro fiel. A minha felicidade é o seu toque, por mais descompromissado que ele seja, por mais cruel que você pareça.
quem sou eu n.3
Atento eu vejo o mundo. Enfeitado ou simples estou sempre presente, você me evita e depois me ama mas não me importo, pois sou sincero, franco e generoso. Ao dançar ou se despir um olhar envergonhado sempre te escapa. Eu tenho medo das suas palavras rudes, as ofensas surgem facilmente e os elogios, não passam de singelos sorrisos de satisfação.
quem sou eu n.2
Sou cheia de curvas. Na verdade sou uma grande curva, que atrai olhares. Sim, atraio olhares quando me colocam em evidência.
Não tenho nada a esconder, mostro logo o meu interior. O que carrego por dentro, faz, frequentemente, homens e mulheres enrubescerem.
Tantas mãos me tocam, tantos lábios me tocam. E eu fico ali, de frente para eles e elas, vendo suas bochechas ficarem coradas, suas orelhas avermelharem-se, sua fala ficar apaixonada e seus pensamentos meio atrapalhados.
Nasci de um sopro (não de deus)(talvez de Baco) e de uma rodadinha.
Não tenho orelhas nem ouvidos, mas escuto cada coisa..
Minha boca é generosa, minha base é tão sólida quanto a do Bruce lee.
quem sou eu n.1
Não me aperte. Ou eu mordo.
Como um jacaré bocudo e banguela agarro a saia da donzela, e só solto se me colarem as orelhas.
Posso ser cara de pau,
Posso ser artificial como o plástico,
Mas sem minha mordida o que é seu não resiste ao vento, e você o perde.
Posso ser irrisório, mas para você um de mim não basta.
Como aos ovos você me quer às dúzias.
Sou paciente, fiel.
Não deixo suas intimidades caírem. Fico por horas com seus fundos na boca, sem dar um pio, (pois apesar de bicudo não sou ave)
Para depois você vir me beliscar.
Só assim largo o osso e descanso as mandíbulas quadradas.
Sou esguio e, sempre seminu, visto-me com economia.
Um simples cinto metálico me envolve a cintura em arabescos curvilíneos.
Mas sem ele me parto ao meio, fico de coração partido.
Quem sou eu?
A coisa
Tem uma forma tridimensional. Um poliedro, composto de vários retângulos. Pesa aproximadamente 500 g. Tem dois lado planos e quatro lados abaulados. Qualquer lado te recebe, te aceita. Está sempre aberto para novas ideias. É rígido e tem uma simplicidade que me atrai. É calmo e paciente. Dialoga com firmeza, mas com doçura. Se for jogado na água afunda, devido à sua densidade. Se lixar muito fica liso e pode até desaparecer. É pau para toda obra. Ipê. Serve para apoiar as mão de uma pessoa em sentido invertido. É bem rígido. Sua cor é marrom claro. Para pregá-lo deve-se utilizar parafuso, pois não aceita prego com facilidade. Aguenta tudo, sempre disposto a dar apoio. Para ser colado recomenda-se utilizar cola branca. Não tem coração. Precisa de um tratamento contra pragas. Não é único e pode ser reproduzido facilmente, embora não seja fácil de encontrar e não seja vendido em lojas. Por sorte, não precisa afirmar a sua existência. Não gosta muito de falar, mas escuta tudo como um amigo atencioso ou um psicanalista que te acolhe, te recebe, absorve tudo o que você tiver para dar e no final sorri. Inerte, só se move por impulsão.
Inércia
Fico pensando e observando as coisas, todas aquelas que habitam os espaços, as grandes e as pequenas, a geladeira, o alfinete ou uma almofada. Você já reparou na mania que elas tem de ficar ali paradas naquela inércia profunda? Aquela tarrachinha de brinco que cai no canto escondido da parede, ela fica lá parada esperando.
Fico imaginando se de repente elas se mexessem...
Que medo...