O artista de circo é um domador de objetos

As discussões sobre como o objeto se relaciona com o corpo suscitadas nos últimos ensaios me fez pensar em como o circo traz essa questão, tradicionalmente e de forma geral *.

 

A relação do artista de circo com seu aparelho remete-se, simbolicamente, às origens do circo moderno: o circo de cavalinhos. Nos treinos diários, o aparelho deve ser domado como um domador cuida de seu animal - a partir de seu próprio corpo, em um jogo dançado entre corpo e, aqui, no caso, o objeto.

 

O corpo se transforma no contato diário com o aparelho, feito de aço, cordas de algodão, ferro, madeira ou outros materiais até mais tecnológicos, mas não mais gentis. As dores sentidas nos primeiros contatos com o objeto vão diminuindo a partir da criação de um diálogo entre corpo e matéria. O objeto laceia, gasta, se flexibiliza a partir do contato com a pele e a pele se endurece, agarra, se adapta. Esse encaixe é preciso e delicado e faz parte de uma construção diária de treinos disciplinados e íntimos com o objeto. Qualquer mudança faria o aparelho parecer um estranho.

 

Essa fidelidade do artista ao seu objeto (que pode ser um trapézio, uma bengala, uma clave de malabarismo, uma cadeira, etc) tem uma forte relação com a segurança da performance. Essa relação pode ser entendida de forma racional - quanto mais íntima e diária é o contato do artista com o aparelho, menor as chances de erro, ou ainda, de forma simbólica - o objeto circense figura como o fio de separação entre a vida e a morte.

 

Essa intimidade diária com o fio da vida é o treinamento do artista circense. Um corpo moldado pela presença constante do risco. Um objeto selvagem dominado pelo artista domador. Nesse processo de docilização do aparelho não há espaço para táticas agressivas. A única possibilidade é a total entrega, fazendo com que a persistência, o toque diário do corpo no objeto transformem suas estruturas, desgastando-o, ou então, a precisão de ritmo, intensidade e trajetória da manipulação promova uma sincronia milimétrica entre o movimento do artista e o do objeto. Uma dança a dois.

 

Essa reflexão me evoca a imagem das grandes ou pequenas erosões naturais, de contato da água com as rochas, nas quais um movimento mínimo da água constrói paisagens raríssimas. Grandes ressacas do mar na encosta ou gotas singelas nas estalactites. Água mole em pedra dura tanto bate até que vira circo.

* Considerando aqui algumas das modalidades circenses, as que o aparelho circense é central é indispensável à própria performance. 

Referência

Maleval, Martine. O Objeto: O Nó Górdio em: O Circo no Risco da Arte. Wallon, Emannuel, 2009.