julia henning

Resenha - O Teatro dos Mortos de Jorge Dubatti

DUBATTI, Jorge. O Teatro dos Mortos: introdução a uma filosofia do teatro. Tradução de Sérgio Molina - São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2016.

Jorge Dubatti traz, em O Teatro dos Mortos, uma proposta de conceitualização para as artes cênicas, partindo do princípio do teatro como acontecimento, algo que acontece e em que se dá a construção de sentido. Partindo desta perspectiva, o autor considera o teatro como um conceito que inclui a dança, o teatro de animação, a performance, o novo circo, a narração oral, o clown, stand up, entre outros acontecimentos que compreendam o convívio, a poiesis corporal e a expectação. Ele defende a utilização do termo 'teatro' a partir da sua concepção etimológica, derivada da palavra grega "théatron" que "incluem, direta ou indiretamente, territorialidade, convívio, poiesis, expectação, os acontecimentos inevitáveis do acontecimento da cultura vivente que estudo" (pág. 20)

Teatro, portanto, em sua definição pragmática, "é a zona de acontecimento resultante da experiência de estimulação, afetação e multiplicação recíproca das ações conviviais, poéticas e expectatoriais em relação de companhia. É o espaço de subjetividade e experiência que surge do acontecimento de multiplicação convivial-poética-expectatorial" (p.37).

Essa abordagem ampliada do teatro coloca, para mim, a questão sobre a necessidade de falar especificamente das artes circenses na minha pesquisa e, mais ainda, sobre a necessidade de definir de alguma maneira o que são as artes circenses contemporâneas. A perspectiva de Dubatti, no entanto, é filosófica e não leva em consideração os aspectos sócio-políticos que compreendem a identificação de um fenômeno. É inegável que o circo existe, as artes circenses são assim nomeadas, existe um grupo social que se identifica como artistas circenses e um espetáculo que se caracteriza como tal.

Se, em relação ao conceito teatro ele enfatiza a importância de uma definição, já que a filosofia do teatro tem como caminho para o conhecimento justamente perguntas ontológicas como 'o que é o teatro/ o que acontece no teatro/ o que há no teatro', etc, porque não teria importância a definição do que são as artes circenses? O autor inclusive cita a frase do diretor mexicano Luis de Tavira que diz que "só o teatro é teatro, porque, se tudo fosse teatro, nada seria teatro" (p.30). Partindo do mesmo princípio, podemos derivar dessa mesma lógica a afirmação de que 'só o circo é circo, porque se tudo fosse circo, nada seria circo'. Apesar de poder depreender essa afirmação, dentro do sistema conceitual proposto por ele não vi a necessidade de entender as artes circenses separadamente do conceito mais amplo de teatro. Dentro da minha pesquisa, entretanto, essa identificação é imprescindível, por comportar uma localização desta linguagem em um contexto acadêmico, social e político.

As ideias propostas por Dubatti em sua filosofia do teatro trazem ainda, elementos para abordagem das poéticas dos processos criativos os quais estou me propondo a pesquisar. Mais do que analisar os processos à luz dos termos propostos, Dubatti propõe um sistema de ideias que serve de base e pressuposto para qualquer pesquisa do que ele compreende como teatro. Inclusive a sua noção de uma historicidade que inclua a inclusão da concepção de teatro a qual está se levando em consideração. Para Dubatti, "pode-se compor uma história do teatro a partir da história das poéticas, sua comunidade e sua integração em cânones" (p.68). Isso me provocou no sentido de incluir na minha pesquisa sobre a concepção de teatro que a circula, fazendo com que as poéticas pesquisadas possam contribuir para essa história, um dos meus interesses na pesquisa.

Outra vantagem da filosofia do teatro, como apresentada pelo autor, é a de introduzir "algumas condições fundamentais para a pesquisa ou pressupostos inevitáveis", dentre eles a perspectiva do teatro como trabalho, práxis. Sendo trabalho, "as teorias do teatro devem ser confrontadas com suas práticas, porque o que se passa no mundo das práticas teatrais não é necessariamente o que se passa no plano abstrato do pensamento" e, além disso, "deve ser pensado não apenas como por meio da observação de suas práticas mas também do pensamento teatral de artistas, técnicos e espectadores que é gerado sobre/ a partir dessas práticas" (p.85). Esses pressupostos contribuem bastante com a minha pesquisa, inclusive na assertividade da escolha metodológica. Até o momento incluí artistas e técnicos como minhas principais fontes e pretendo também incluir o espectador, como fontes de material para um percurso indutivo.

Essas foram algumas das relações que pude fazer em uma primeira leitura de 'O Teatro dos Mortos'. A obra, no entanto é muito interessante para qualquer pesquisa em artes cênicas pois coloca de forma clara a distinção e definição de conceitos frequentemente utilizados, contribuindo para a problematização e reflexão sobre conceitos essenciais para a reflexão.

 

Julia Henning

Artista pesquisadora

coletivo Instrumento de Ver

Mestranda em Artes Cênicas na Universidade de Brasília

resenha realizada pelo projeto de pesquisa Poéticas Circenses Contemporâneas

apresentado pelo Fundo de Apoio à Cultura da Secretaria de Cultura do Distrito Federal

Ensaio: Criando um jeito de criar

Uma das perguntas que sempre nos fazemos é sobre se existe algo próprio no processo criativo do circo, ou mesmo no nosso processo criativo enquanto grupo. Precisamos nos colocar em risco? Precisamos nos pendurar, tirar os pés do chão? Precisamos criar números?

A partir desses questionamentos, nos reunimos e levantamos alguns interesses em comum para identificar um método criativo que fosse nosso.

Se pensarmos o circo a partir das suas técnicas e procedimentos, podemos destacar a repetição como essencial à construção de um corpo circense. O circo exige um treinamento diário, de repetição cotidiana e convívio. A repetição envolve não só o movimento, como garante também a confiança e a segurança necessárias para lidarmos com o risco. Mas, ao fundo, essa repetição vai transformando pouco a pouco as relações e os indivíduos. Isso é circo. A burocracia da repetição aliada à entrega ao processo.

É como se construíssemos um circo na efemeridade do cotidiano criativo.

Apesar da importância que damos à sala de ensaio (e isso significa, para quem nos conhece, longos ensaios diários), sabemos que só isso não é suficiente sem a experiência compartilhada dos filmes que gostamos juntos, dos espetáculos que nos emocionaram e da nossa vivência em cima dos palcos e picadeiros. De alguma forma, criar é reunir pedaços da vida e criar juntos é uma maneira de colecionar momentos vividos em conjunto.  

O nosso circo tem a ver com essa experiência compartilhada. Nossa pista de relações. Nesse circo, as relações são familiares.  

Partimos do princípio que as relações em cena são construídas em ato, no contato entre os corpos. A experiência é, portanto, o principal elemento para a dramaturgia. Colocar os corpos em situação de relação nos dá resultados imediatos - estéticos, sensoriais, dramatúrgicos e coreográficos. Aqueles questionamentos, portanto, sobre a necessidade do risco e do corpo em suspensão ou sobre a característica dramatúrgica de sucessão de números permeiam constantemente as nossas criações, mas não são nossas fontes de inspiração, nem pontos de partida.

Partimos do treinamento extenuante, que obriga nossos corpos a se colocarem em estado de presença, ação e reação. O processo criativo traz esse corpo ativo e reativo como meio e fim cênico. O espetáculo também se constrói pelas capacidades e limites desse corpo.

O aprendizado é informal e a criação é intuitiva.

O ator atua

O dançarino dança

O circense circula

Como criamos? No coletivo Instrumento de Ver, o processo de criação é fonte de inspiração, como caminho e como fim. Nos perdemos em exercícios, cenas e emoções. As relações estabelecem os desafios e nos colocam sempre em conflito com nossas individualidades e com o outro. O resultado final é um guia, um lugar mais confortável onde os conflitos por hora se resolvem e onde alcançamos um estranho prazer, uma sensação de estarmos juntos, mesmo depois de um caminho de discordâncias e concordâncias tão intenso. Surge o então o público, esse elemento desconhecido que nos mete medo, mas que dá todo o sentido para o que antes parecia ser apenas uma loucura coletiva. Comunicamos algo que vai além do esperávamos, tocamos algumas pessoas com sutilezas que não havíamos nem percebido que estavam ali. O que nos impulsiona é a necessidade de criar, o que nos mantém vivos é a criação.

Julia Henning - Artista pesquisadora | coletivo Instrumento de Ver | Mestranda em Artes Cênicas na Universidade de Brasília

Maíra Moraes - Artista pesquisadora | coletivo Instrumento de Ver | Graduanda em licenciatura em Dança pelo Instituto Federal de Brasília

texto criado dentro do projeto de pesquisa Poéticas Circenses Contemporâneas patrocinado pelo Fundo de Apoio à Cultura da Secretaria de Cultura do Distrito Federal